Carregamos nossa herança nas costas, não nos livramos dela. Nós somos tudo o que já passamos. E as nossas heranças quais são?
A nossa herança é termos invadido estas terras, é termos trazido o açúcar, os doces, a nossa tristeza, a nossa saudade para este Brasil.
A nossa herança é termos vindo parar aqui vendido como escravos nas nossas aldeias da África, e depois termos trazido junto com a nossa dor o dendê, a pimenta, o som grave do tambor.
A nossa herança é termos tido tantas línguas e sermos tantos diferentes povos indígenas. É termos deixado aqui que se criasse e multiplicasse, como disse Camara Cascudo, a rainha do Brasil, a mandioca.
E como tratamos desse nosso passado? E como tratamos de tudo o que fomos? Com desprezo, com preconceito, com vergonha, como se essa não tivesse sido a nossa história. Como se quiséssemos ser outra coisa, outro povo, outra origem. Como se quiséssemos ser o que não somos.
Acredito que só quando tivermos orgulho, prazer e dor de ser quem somos, poderemos ser uma nação mais igualitária.
Enquanto estivermos fugindo do nosso passado não podemos querer ser nada.
E para assumirmos o nosso passado, precisamos antes de tudo, conhece-lo melhor.
No momento em que o nosso passado, aos nossos olhos, passar a ser importante, nós também passaremos a ser importantes pra nós mesmos.
E tudo isso, esse pensar, esse conhecer, esse descobrir só pode vir através da educação. Não só da educação formal, mas da educação em todos os sentidos.
E a televisão pelo seu poder de penetração, acredito que é o grande instrumento da educação.
E o que a TV nos mostra sobre o nosso passado, sobre a nossa história, sobre quem somos?
O Brasil que passa na TV não tem mandioca, não tem índio, não tem negro. Os portugueses são o alvo do nosso escárnio. Os negros são os que nos prestam serviços nas novelas, os que trabalham pra nós, como no século dezoito. Os índios às vezes são mortos nos bancos das praças e acabam aparecendo nos telejornais. Às vezes dançam e cantam na sua língua estranha para nosso espanto e diversão. E eles continuam a ser pra nós, o que eram no século dezesseis para os portugueses: grandes desconhecidos.
Essa insistência em ignorar nosso passado, essa falta de conhecer profundamente quem fomos e o que somos, resulta numa característica muito comum entre nós brasileiros: a baixa autoestima.
Eu viajo pelo Brasil há cinco anos realizando o programa Caminhos e Parcerias da TV Cultura de São Paulo, que mostra o trabalho de iniciativas principalmente de ongs buscando uma melhoria na qualidade de vida de populações carentes.
E esse trabalho bate de frente com essa primeira e poderosa barreira: a baixa autoestima.
As pessoas não se sentem capazes de trabalhar, de cuidar da própria vida e da vida de seus filhos, enfim, elas se sentem tão humilhadas, tão diminuídas na sua condição de ser pobre, no seu destino de ser miserável, que não se acham capazes de serem responsáveis por si mesmas. Acreditam que tudo tem que lhes ser dado. Esperam dos políticos, da mesma forma que esperam dos apresentadores dos programas de tv. Querem que tudo lhes seja dado.
É uma mentalidade que começa na escravidão, passa pelo sertão e os coronéis, dura até hoje nas eleições, onde o voto é acertado em troca de alguma coisa e é reforçado pela televisão em programas de auditório: vocês querem dinheiro? Me divirtam que eu dou, se submetam a mim que eu dou. Venha até aqui e divirta meu público às custas do ridículo da sua história e eu lhe darei o que você precisa. Sozinho você não será capaz.
E essa humilhação que vamos assistindo vai conformando nosso pensamento. E o que é humilhação começa a soar como natural. Então não é assim que as coisas são?
Quanto vale a nossa humilhação? Se ela tem algum preço, algum valor, eu vendo.
Quanto vale a nossa intimidade revelada, falseada? Se ela tem algum preço, eu vendo.
Quanto vale o nosso amor? Se ele tem algum preço, eu vendo.
Quanto vale a nossa história? Se ela tem algum preço, eu vendo.
Quanto vale o que somos? Se ser tem algum preço, eu vendo.
E assim a televisão vai nos ensinando os valores desse mundo. É ela quem multiplica pelo Brasil o que é moral, como devemos agir no dia a dia. É ela quem nos dá aula de ética, sobre os valores mais intrínsecos da humanidade.
O estudo de uma associação americana de psicologia mostra que uma criança que assiste a 3 horas de tv por dia, ao final de 5 anos, isto é quando ela estiver terminando o curso primário, essa criança terá assistido na TV cerca de 8 mil assassinatos e mais de 100 mil atos violentos.
Esses números são sobre a TV americana, mas a gente sabe que nossa TV não é diferente disso.
Outro dia vi na TV um filme com Mel Gibson, onde “o bandido” já tinha aprontado mil coisas contra ele, aí ele acabou de bater no vilão, que está ali jogado no chão. Então o Mel Gibson põe um cigarro na boca e pergunta: você tem fogo? O vilão, quase desmaiando de tanto apanhar, faz que não com a cabeça do representante do mal e diz: você não tem fósforo, então não serve pra nada.
É essa violência justificada pelo ódio, pelo erro do outro. É o valor que tem uma vida. Isso é moral, isso é ética, são os nossos valores, escorrendo pelo ralo. Assim aprendemos a ser quem somos.
Eu já entrevistei vários jovens infratores, da periferia de São Paulo, que falam em seqüestros relâmpagos, em mortes, como se nada fosse, inclusive meninas de 15, 16 anos. Uma dessas meninas me contou rindo que estava ali por que tinha feito um seqüestro relâmpago e eu senti no olhar e no sorriso dela, que ela dizia aquilo como quem conta que cabulou uma aula, ela não tinha idéia da diferença de valores. Ela aprendeu que a vida humana não vale nada.
Eu sinto também, quando converso com jovens infratores, a necessidade que eles tem de mostrar que praticaram um mesmo crime, mas de um modo completamente novo, inusitado.
Todo mundo quer mostrar o seu talento para o mundo. Se não puder ser para o bem será para o mal. Se não puder ser onde não me querem, onde não me deixam ser, será entre outros excluídos.
Todo mundo precisa fazer parte de algum grupo, precisa se sentir incluído, ser da turma, nem que seja da turma dos traficantes, dos bandidos. Enfim, o menino será da turma que o receber melhor. Onde ele perceber que alguém, de alguma forma reconhece o seu valor.
Hanah Arendt nos diz que aprendemos tudo pelo exemplo, “o homem é o único ser que aprende a se tornar humano”, aprendemos olhando, observando. Por isso falamos igual a nossa mãe, andamos igual ao nosso pai. Nesse sentido a televisão é o nosso grande exemplo. Tudo o que vemos um homem fazer, sabemos que a partir dali passamos a carregar dentro de nós aquela possibilidade. Por isso acredito que é tão negativa e extrema violência veiculada nas emissoras de televisão.
Além dos filmes, os telejornais ditos policiais que ressaltam todos os crimes do dia, e quando não há crime, um incêndio serve, um acidente de trânsito, qualquer coisa que esmague o nosso pensamento e nos deixe em estado de choque suficiente, para que fiquemos paralisados diante da tragédia de estar vivo. E assim, uma vez mais a impotência vence a nossa vontade.
Ao lado da violência, a propaganda também vai nos dando lições de ética, a ética do consumo. E assim, a televisão vai nos mostrando que se a gente tiver aquele carro, seremos únicos, teremos o destaque que todos queremos. Se tomarmos cerveja seremos tão lindos quanto aqueles atores da novela, que vão mudando de nomes, mas são todos parecidos e aí enfim, teremos a felicidade.
No Brasil que passa na TV a felicidade não depende do nosso trabalho, da nossa responsabilidade, da nossa solidariedade, do nosso amor, do nosso cuidado com a nossa casa, a nossa rua, o nosso bairro, na nossa cidade.
A televisão nos ensina que a felicidade virá num lance de sorte, num dia, quem sabe? Em que o apresentador de bom coração escolher a nossa carta e nos chamar no auditório. Não importa que riam de nós. Ser humilhado não tem importância nenhuma.
A felicidade virá quando formos fortes, com músculos à flor da pele, para poder aparecer na novela sem camisa. Ser bom profissional não tem importância nenhuma.
A felicidade virá quando formos loiras, jovens e bonitas e durará uma temporada, quando vier a nova safra de loiras, jovens e bonitas. O talento não tem importância nenhuma.
A felicidade virá num dia, quem sabe? Em que a emissora de televisão nos escolha, entre tantos, para mostrar em rede nacional, a gente namorando, com uma pessoa qualquer que não conhecemos e nem amamos. O amor não tem importância nenhuma.
A felicidade virá enquanto a televisão estiver ligada. Caso contrário, como saberemos a maneira pela qual a felicidade nos alcançará?
Neide Duarte, São Paulo, 5 de junho de 2003.
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